in Revista de Psicología
Psicologia e políticas públicas na área rural: Estudo de caso em assentamento
Resumo:
O presente trabalho visa compreender como as políticas públicas impactam a vida dos residentes em um assentamento, analisando como a Psicologia tem atuado no campo, uma vez que as políticas públicas têm sido o seu principal meio de aproximação com as ruralidades. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com moradores de um assentamento, as quais foram submetidas à análise de conteúdo, sendo construídas três categorias: os contrastes presentes nos modos de vida do assentamento, a relação dos moradores com as políticas públicas, e a atuação da Psicologia nas políticas acessadas pelos assentados. Os resultados indicam que a ausência e/ou insuficiência das políticas públicas produz conflitos no cotidiano da comunidade e impacta significativamente na qualidade de vida da população, produzindo impactos subjetivos e psíquicos. Também evidenciam um desconhecimento acerca da atuação da Psicologia, que tem sido esporádica, com um viés predominando clínico-individual e de caráter privado. Conclui-se pela importância de uma Psicologia que compreenda sua práxis ético-política na atuação junto às populações rurais, em especial em sua inserção nas políticas públicas, bem como a necessidade da produção de conhecimentos acerca da pluralidade no campo e suas populações, aliado à expansão de debates sobre ruralidades nos espaços formativos.
Introdução
A reforma agrária é posta como uma alternativa de redistribuição de terras visando a justiça social, posto que pode combater o êxodo rural e as desigualdades no campo e na cidade. Contudo, para que esses objetivos sejam efetivados, se faz necessário —para além do acesso à terra— que as famílias tenham condições de permanecer e bem viver no campo.
Nesse sentido, as políticas públicas se apresentam como elemento chave nos assentamentos, ao contribuírem para que uma nova organização social e territorial se desenvolva. Porém, o que se nota é a ausência dessas políticas e, quando estas estão presentes, uma implementação que desconsidera as particularidades, os modos de vida e as condições objetivas e subjetivas daquele contexto (Santos et al., 2020 ).
Pensando na relação entre subjetividade e objetividade 1 , a Psicologia teria muito a contribuir, concorrendo para a desnaturalização dos fenômenos psicossociais, a emancipação dos sujeitos e a transformação social. No entanto, nota-se uma presença incipiente e um desconhecimento da Psicologia tanto das políticas públicas, quanto das ruralidades.
Visando diminuir essa lacuna, o presente trabalho apresenta os resultados de um estudo de caso realizado em um assentamento rural no interior do Brasil, que teve por objetivo compreender como as políticas públicas impactam a vida dos seus moradores, bem como a atuação da Psicologia nesses espaços, de forma a somar com o arcabouço teórico que possa nor-tear as práticas psicológicas e políticas públicas voltadas à essa população.
O campo, as políticas públicas e a Psicologia
O modelo de desenvolvimento econômico e social adotado no Brasil, fomentou a industrialização, a concentração fundiária, o êxodo rural e a formação, nos centros urbanos, de uma superpopulação em condições precárias de trabalho e sem acesso aos direitos fundamentais. Cabe aqui ressaltar a crítica de Kayapó (2014), segundo o qual esse modelo de desenvolvimento se dá a partir de uma lógica do mundo tido como “civilizado”, que desencantou o mundo e, a partir da lógica capitalista, impôs as tônicas da acumulação de capital e do individualismo, de forma que foi perdido o envolvimento não só entre as pessoas, mas também com a terra e a natureza.
A opção por um modelo de desenvolvimento que tem como um dos seus eixos o agronegócio (o qual se baseia na monocultura, na concentração fundiária, na expulsão do pequeno agricultor familiar e dos povos tradicionais de suas terras) é responsável pelas situações de vulnerabilidade e violação do direito à terra aos camponeses (Feitosa & Oliveira, 2021). Para esse modelo, o latifúndio passa a ser concebido como a única forma possível de desenvolvimento no campo, concentrando capitais e o investimento público, cerceando a existência das pequenas propriedades e da agricultura familiar e tradicional.
Como decorrência, os centros urbanos se tornaram um grande receptáculo de contingentes populacionais que migraram, tornandose mão de obra barata nas indústrias em expansão. Em função da larga produção industrial, a atenção se voltou para os centros urbanos, de forma que as cidades passaram a ser associadas à evolução, tidas como modernas e prósperas, enquanto o campo passa a ser desvalorizado, atrelado ao atraso (Silva & Macedo, 2017). Essas concepções e os investimentos públicos insuficientes voltados aos territórios da agricultura familiar vem gerando níveis de precariedade àqueles que resistem no campo.
Por outro lado, a reforma agrária é posta como uma alternativa para viabilizar uma redistribuição de terras visando justiça social, bem-estar dos trabalhadores rurais e conservação de recursos naturais. Souza e Moreira (2017) acrescentam, como pontos positivos da reforma agrária, os fatores econômicos, a produção de alimentos de forma mais saudável e integrada à natureza, o combate ao êxodo rural e à desigualdade no campo e nas cidades.
Além de possibilitar uma nova organização territorial com justiça social, econômica, política e social, tornar-se assentado da reforma agrária, tendo passado por um movimento social de luta pela terra, permite ao sujeito se reconhecer enquanto indivíduo singular, ao mesmo passo que cria significados compartilhados coletivamente e vínculos que transformam a subjetividade dos envolvidos (Figueire-do & Pinto, 2014). Como proposto por Guajajara ( 2021), é uma estratégia de re-envolvimento, uma vez que favorece a questão ambiental, a inclusão social e a garantia de direitos, promovendo o bem-viver 2 .
Contudo, para além das lutas pela sua efetivação, a reforma agrária enfrenta entraves no que diz respeito às políticas públicas, uma vez que para além do acesso à terra, se fazem necessárias condições de permanência das pessoas no campo.
As políticas públicas são fruto de luta dos trabalhadores para garantir seus direitos, ao mesmo tempo em que se configuram como uma forma de intervenção do estado nas questões sociais decorrentes das contradições da sociedade capitalista (Oliveira & Sousa, 2022). No meio rural, essas políticas só foram possíveis através de intensa luta dos movimentos sociais, ainda que se apresentem de forma precária, não sejam implementadas, ou não levem em consideração as demandas específicas desse público (Santos et al., 2020 ; Sousa, 2013).
Lima (2014 ) aponta que, mesmo em assentamento com anos de estabelecimento, ainda há problemas na regularização de algumas famílias e liberação de créditos, seja para produção ou mesmo para habitação. A segurança alimentar, educação, saúde e lazer que para Silva e Cereda (2014) são critérios básicos para uma estabilidade social, econômica e ambiental, também apresentam grandes falhas no espaço dos assentamentos. Na pesquisa de Araújo et al. (2018 ), o atendimento à saúde e o acesso à educação também se destacaram entre os principais problemas que dificultam a vida no assentamento, além do transporte, assistência técnica e comunicação.
Para além das políticas ausentes e/ou ineficientes, outros entraves são encontrados por essa população no acesso aos seus direitos, como a burocracia para conseguir as documentações demandadas por cada política específica, e os conflitos entre pares ou com as três esferas do poder público. Araújo et al. (2018 ) apontam a falta de documentações pessoais como um entrave para regularizar propriedade, o que pode prejudicar outros processos que dependem de tais documentações, e Sousa ( 2013) salienta a burocratização imposta pelas instituições, o que dificulta o acesso aos créditos de custeio da terra e produção. Araújo et al. (2018 ) e Sousa ( 2013) ainda ressaltam o desconhecimento sobre os direitos, as documentações necessárias e sobre como cobrar a efetivação das políticas públicas, além da falta de recursos financeiros para pagar serviços e taxas decorrentes do processo.
É importante ressaltar que, segundo Gonçalves (2018), para além dos efeitos objetivos no cotidiano e na vida das pessoas, as políticas públicas, enquanto formas de regulação das relações sociais e dos direitos em uma dada sociedade, produzem também efeitos subjetivos, sendo o espaço subjetivo da realidade social em que ocorrem os embates entre Estado, sociedade e políticas a área de intervenção da Psicologia. Gonçalves (2018) aponta ainda o papel da Psicologia na desnaturalização dos fenômenos sociais e emancipação dos sujeitos na luta por seus direitos, trabalhando assim no caminho de uma “transformação da sociedade pautada na promoção e garantia de direitos sociais” (p. 63).
A Psicologia tem se inserido cada vez mais na área de políticas públicas, sendo esse um espaço de aproximação da profissão com o campo brasileiro, e a atuação da Psicologia nessas políticas tem se mostrado como um elemento importante na garantia dos direitos das populações não-urbanas. Contudo, da mesma forma que as políticas não estão sendo efetivadas adequadamente no meio rural, as práticas psicológicas também são exercidas de maneira descontextualizadas (Silva & Macedo, 2017).
Segundo Santos et al. (2020), a zona rural possui particularidades, o que resulta em diferentes demandas e, por conseguinte, ações e políticas específicas. Silva e Macedo (2017) sinalizam a influência, nas políticas públicas, das concepções que associam o campo ao atraso ou como um continuum para o urbano. Além de preconceitos ligando os povos rurais à estereótipos, há ainda o imaginário que toma o campo como um lugar idílico, como se só houvesse harmonia, cooperação e paz, invisibilizando todas as mazelas e violências a que as populações rurais estão sujeitas (Lopes et al., 2018 ).
Destaca-se então, conforme Lopes et al. (2018), a necessidade de olhar para as ruralidades em sua multiplicidade. Dantas et al. (2018) e Silva e Macedo (2021) salientam a complexidade com que o campo deve ser trabalhado, para além de limites paisagísticos e atividades desenvolvidas, e para tal se faz indispensável que a Psicologia assuma novos compromissos para com essas pessoas.
Nesse sentido, Dantas et al. (2018) sinalizam para a necessidade de produção de conhecimento em Psicologia que amplie a compreensão sobre as ruralidades e as populações rurais, bem como sobre as políticas públicas, contribuindo para que estas sejam formuladas considerando as vivências dos assentados, suas formas de vida e demandas territoriais. Tais conhecimentos devem nortear não só as políticas públicas, mas também as práticas psicológicas específicas para o campo, uma vez que essa atuação precisa ser condizente com a realidade vivida por essa população.
Método
O presente trabalho se configura como um estudo de abordagem qualitativa, mais precisamente um estudo de caso de caráter exploratório, haja vista que essa metodologia permite investigar, de forma ampla e detalhada, uma questão sobre a qual se tem pouco conhecimento sistematizado, podendo contribuir para “proporcionar uma visão global do problema ou identificar possíveis fatores que o influenciam ou são por ele influenciados” (Gil, 2022, p. 55). Optou-se por um estudo de caso posto que este, entre outros aspectos, possibilita uma investigação mais flexível e ampla de uma situação ou contexto real, viabilizando o conhecimento de suas singularidades e das relações envolvidas no ambiente (Gil, 2022).
O assentamento ora investigado, no qual residem cerca de 150 famílias, se situa na região centro-oeste do Brasil. A primeira ocupação de terra (acampamento) que originou o assentamento deu-se há 20 anos, sendo que ele foi de fato regularizado há 10 anos.
Em virtude da pandemia de COVID-19, os procedimentos de apresentação da pesquisa, do termo de Consentimento Livre e Esclarecido (CLE) e de coleta de dados foram realizados remotamente, utilizando o aplicativo WhatsApp e respeitando-se o constante no Ofício Circular CONEP N.º 2/2021. A presente pesquisa respeitou todos os aspectos éticos envolvidos no trabalho com seres humanos, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso, sob o número CAAE 03738318.6.0000.5690.
Inicialmente, as lideranças do assentamento foram contactadas, foi-lhes enviado o projeto de pesquisa, e sanadas as dúvidas a respeito do mesmo. Após a anuência da liderança, e com o auxílio desta, foram selecionados três moradores do assentamento que tinham facilidade de acesso à Internet e que manifestaram interesse em participar da pesquisa, sendo esses os critérios de inclusão na amostra. Como critério de exclusão, foram adotadas a idade (não participaram menores de 18 anos), pessoas com dificuldade de acesso à Internet, e que não manifestaram o desejo de participar ( tabla 1 ).
Foi feito um contato telefônico inicial com cada um dos entrevistados, a fim de explicar os objetivos, metodologia e referencial da pesquisa, sanar eventuais dúvidas e confirmar seu interesse em participar. O CLE foi enviado via e-mail, e após leitura, eventuais dúvidas dirimidas e consentimento firmado, foi agendada uma videochamada por meio do aplicativo WhatsApp, a fim de se realizar a entrevista.
Optou-se pela utilização de entrevistas semiestruturadas, por essas permitirem um maior diálogo entre o pesquisador e o entrevistado, sendo que este último pode discorrer mais livremente sobre os aspectos que lhe são relevantes (Gil, 2022). Nas entrevistas foram abordados aspectos da vida cotidiana, o acesso aos serviços e políticas públicas, bem como ao atendimento psicológico prestado, ou não, por meio desses. Estas duraram em média 1 hora, tiveram o áudio gravado e foram transcritas integralmente.
As transcrições foram submetidas à análise de conteúdo qualitativa, utilizando como categoria analítica a temática (Bardin, 2020). Essa metodologia de análise prevê a sistematização e exploração do material através de 3 fases distintas: 1) a pré-análise, na qual o material foi organizado e, através de leitura flutuante, foram formuladas as hipóteses e categorias iniciais; 2) a fase de exploração do material, no qual a pré-organização foi relida e as categorias foram reagrupadas e consolidadas em 3 categorias temáticas: o impacto do acesso à terra nos seus modos de vida; as políticas públicas presentes no assentamento e a atuação da Psicologia nesse contexto; e 3) a fase de tratamento dos dados, na qual foram realizadas inferências e interpretações a partir das categorias construídas.
A fim de se garantir o sigilo, as falas dos entrevistados não foram identificadas no presente artigo, sendo indicadas pelas aspas.
Resultados e discussão
Impactos nos modos de vida
A reforma agrária dá aos trabalhadores a possibilidade de terem acesso à terra e bem viver nela. Com isso, deixam uma vida de precariedade para produzirem e viverem em comunidade, o que é visto com bons olhos pelos entrevistados, os quais relatam preferir o modo de vida que tem no assentamento agora.
Os entrevistados destacaram como pontos positivos do assentamento a organização social, a solidariedade, o diálogo e a crítica/reflexão; também foram apontadas a relação com a terra, a produção de alimentos saudáveis e a tranquilidade para a família. O movimento de luta pela terra permitiu que tivessem acesso a conquistas que não seriam possíveis de outra maneira, como afirmou uma entrevistada. Como aspectos negativos, foram destacados as várias lutas e frustrações, a falta de investimento público e ausência/insuficiência de alguns serviços/políticas, que trazem atrelados a si outras consequências, como estigmas e conflitos.
No discurso dos assentados, chama a atenção as comparações de sua forma de viver com outras condições de vida, modos de produção e de reprodução da existência. A produção e os aspectos associados à qualidade de vida que se tem no campo foram bastante destacados, pois o campo dá a possibilidade de cultivar seu próprio alimento, o que no meio urbano se torna mais difícil: “Em vez de ficar lá nas periferias passando fome e lutando por emprego e não acha, aqui pelo menos nós consegue produzir, ter nossas ‘criaçõezinhas’ e consegue sobreviver mais dignamente”.
Evidenciaram o fato de que eles próprios consomem seus produtos, antes de pensar em comercializar ou distribuir: “Nós não usa veneno nem deixa também né, para nossa saúde”, de modo que características como “saudáveis” e “sem veneno'' foram elencadas em oposição ao agronegócio. São perceptíveis nas falas algumas dicotomias/contrastes com outros modos de vida, principalmente em relação às cidades e ao agronegócio.
A participação social dos moradores chama a atenção, pois se constituem um grupo articulado, em constante diálogo, sempre se reunindo para discussão das pautas. Após entrarem em consenso, buscam os responsáveis políticos nos centros urbanos, sendo a prefeitura e o governo federal, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-CRA) os que foram citados nas entrevistas: “Então, nós tem bastante diálogo, consegue fazer as nossas tarefas e dividir também as tarefas. É muito bom, pelo diálogo que nós tem, nós consegue fazer toda essa divisão”.
Quando tem uma necessidade aqui, nós fazemos a nossa pauta, leva até na prefeitura e marcamos uma audiência [...] e leva a liderança de todo o assentamento, mas tem também a associação dentro do assentamento, nós passa às vezes de cedo até duas horas discutindo a pauta.
Diferentemente do apontado por Araújo et al. (2018 ) e Sousa ( 2013), em que a falta de conhecimento era mais um obstáculo, os moradores do assentamento apresentam compreensão sobre os serviços que podem acessar e como se organizar para que suas demandas sejam atendidas, o que pode ser explicado pela participação no movimento social, com o decorrente processo de diálogo e de reuniões presentes em seu cotidiano, além da organização de associações e integração em movimentos de militância.
A falta de conhecimento, por outro lado, foi apontado em relação à população em geral sobre a reforma agrária e sobre os trabalhadores rurais na luta pela terra. Foram abordadas algumas queixas relacionadas ao preconceito que os moradores do assentamento sofrem da população em geral: “A maioria das pessoas têm nós como vandalistas, pessoas vagabundas, não tem nós como pessoas que lutam pelos nossos direitos [...] é o nosso direito de terra, né”.
Uma das entrevistadas apontou o bullying e certo desprezo sofrido, principalmente pelas crianças, relacionadas à poeira e ao suor, pois para se deslocarem até as cidades passam por estradas de terra, por muito tempo e expostos ao calor. Já outra entrevistada versou sobre os preconceitos que eles sofrem, citando principalmente questões afetas à política e a desinformação quanto à luta pela terra, pois eles não estão “tomando nada de ninguém”, haja vista que tudo que fazem respeita a lei.
Foi relatada a presença de grupos de interesses distintos no assentamento, sendo que uns teriam certos privilégios em relação aos outros, segundo a leitura dos entrevistados: “Nós somos divididos em três grupos, aí eles atendem um grupo e deixa outros dois sem atender”.
Esse parece ser um elemento de ambivalência presente no assentamento, haja vista que a referência à coletividade, respeito e solidariedade estava presente no discurso como uma prática preservada em suas vivências. Segundo Figueiredo e Pinto (2014), a participação e coletividade desenvolvidas no momento de acampamento se fragmentam no assentamento, em virtude da entrada da lógica da mercadoria presente na sociedade capitalista e a con-sequente adaptação ao mundo administrado.
Além disso, outra questão bastante ambígua diz respeito à tranquilidade presente na vida rural, a qual, segundo os entrevistados, permite um melhor ambiente para se criar os filhos. No entanto, uma das entrevistadas trouxe que a vida no assentamento é muito estressante, principalmente com a violência chegando, relatando um caso de latrocínio na comunidade, além da exposição dos despejos sofridos durante a ocupação.
A vida é muito estressante né, ainda mais agora violência chegando nos assentamentos, nós perdemos um companheiro aqui [...], foi um assalto seguido de morte, um latrocínio, e isso é uma violência muito grande [...], para gente que não tem esse costume então abala os sentimentos dos jovens, principalmente das crianças.
A área rural como um todo, principalmente nos acampamentos, assentamentos, quilombos, terras indígenas e outras áreas disputadas pelo agronegócio, tem sofrido com o crescimento da violência, não só em áreas de conflito, mas com o aumento de modalidades de violência que antes eram típicos da área urbana, como as associadas ao uso de substâncias psicoativas e ao tráfico de drogas (Rodrigue & Ronzani, 2021).
Por fim, pelas falas dos entrevistados se constata que a reforma agrária, enquanto uma política pública de acesso à terra, é um fator chave na melhora de seus modos de vida, ao permitir o acesso a moradia, produção e a condições satisfatórias para a criação dos filhos, além de espaço de organização política e de sociabilidade: “Eu amo morar no sítio, gosto demais. É melhor para a gente criar nossos filhos, é mais tranquilo, e o modo de vida aqui no sítio é mais saudável”.
Primeiro em relação à terra, a produção, o retorno que a gente tem no campo [...], eu gosto muito além de ter a terra, da organização né, e a gente tá organizando a cooperativa, tem nosso grupo de mulheres produzindo muito, tem os mutirões [...] A gente tá tentando organizar umas casinhas ali, que era da antiga fazenda pra poder transformar elas em salas de aula.
Ao mesmo tempo, a ausência e/ou insuficiência de outras políticas têm limitado sua efetivação, o que além de prejudicar a vida e as atividades cotidianas dos moradores, tem fomentado conflitos. Essas dificuldades não podem ser vistas como naturais, mas sim como um projeto que concorre para a expulsão dessa população do campo, população esta cujo projeto de vida vai contra o interesse hegemônico associado ao processo de desenvolvimento em curso. Conforme Lopes et al. (2018), as situações de vulnerabilidade no campo não podem ser entendidas de maneira simplista e isolada, mas dentro de um contexto sócio-histórico e político que gerou e legitimou tal fenômeno.
As políticas públicas no assentamento
Para que a reforma agrária possibilite uma nova organização territorial com vistas à justiça social, são necessárias políticas que atendam as necessidades de seus moradores, sendo que os entrevistados evidenciaram consciência dessa importância: “Somente a terra não é a reforma agrária que a gente quer, tem outros direitos que tem que vir acompanhando”.
No entanto, mesmo após 10 anos de criação do assentamento pelo Estado, assinala-se que os assentados não tiveram garantidos o acesso a políticas básicas de infraestrutura: não possuem acesso à água, a nenhum tipo saneamento básico, não há transporte público, as vias de acesso não foram construídas pelo poder público, e a questão das estradas e pontes é sempre discutida com a prefeitura, sendo que essa situação é agravada na época da chuva. A energia elétrica é um dos únicos recursos presentes, disponibilizada através do programa “Luz para Todos”.
Com relação à água e às casas, aspectos essenciais para a manutenção da vida com um mínimo de dignidade, sua ausência é sanada por cada família a partir de seus recursos próprios, com a construção de moradias e de poços artesianos e semi-artesianos pelos moradores. Aqueles que não dispõem de condições financeiras, precisam comprar água ou buscar nos vizinhos, ou moram até hoje em barracos de lona e tábuas. Cabe assinalar que os parâmetros, as condicionalidades e documentações exigidas para acesso à política de crédito habitação são as mesmas utilizadas para habitações da área urbana, o que desconsidera as características rurais e dificulta o acesso aos assentados, como se pode verificar nas falas a seguir: “Eles pedem muitos documentos, nós manda aí quando chega lá eles fala que precisa de mais documento [...] então por isso que o processo é longo, né” e “Mas muitas [famílias] ficaram sem, pela burocracia, porque eles exigem muito de quem tá começando, aí nem todos conseguem acessar”.
Quanto às políticas de produção, nem todos conseguiram acessar o fomento inicial e os financiamentos subsequentes, devido às extensas documentações exigidas. Os entrevistados destacam a burocracia no acesso aos créditos, o que é um empecilho, além da demora e desorganização por parte das instituições públicas. Também apontaram para a construção de uma cooperativa no assentamento, mas que pela burocracia (as mesmas condicionalidades e documentações exigidas para cooperativas urbanas) ainda não está funcionando.
Outro ponto diz respeito à ausência da assistência técnica, a qual deveria acompanhar demandas produtivas dos assentados, como a preparação adequada do solo, incentivo às técnicas produtivas e o fomento à agroindustrialização. Araújo et al (2018) apontam a insuficiência, ausência ou descontinuidade da assistência técnica prestada nos assentamentos e o prejuízo social e econômico que isso causa, uma vez que os assentamentos são implantados em locais com solo já desgastado, com propriedades físicas e químicas inadequadas. A falta de investimento em políticas que favoreçam a agricultura familiar, gera a necessidade dos entrevistados terem outras atividades além da agrícola para complementar a renda e, por vezes, investir no próprio lote:
Ele trabalha com o trator da cooperativa nos tempos de chuva, assim que as pessoas precisam de fazer reforma nos pastos, na roça e também ele trabalha de pedreiro. Nós tira um pouco da nossa sustentação nesse trabalho de pedreiro, porque é propriedade pequena, então não tem como tirar um salário grande para gente poder sobreviver, nós tem bastante produção, mas nós precisa pagar as contas também.
Quanto às políticas sociais, estas não são oferecidas dentro do assentamento, a exceção de uma visita médica quinzenal, insuficiente para atender a todos e oferecida em espaços inadequados que por vezes expõem os usuários, como o barracão social ou o salão de uma igreja.
Nós temos o serviço aqui, mas não é do jeito que a gente quer, por exemplo, nós tem a equipe médica que vem no assentamento, mas isso é agora de tanto a gente ir lá e lutar, levar nossas pautas, agora vem um médico aqui no assentamento mas não tem o posto de saúde.
A saúde deveria ser um aspecto importante a ser considerado para o cuidado em território, tendo em vista os fatores geográficos e de locomoção, além das várias vulnerabilidades, jornadas perigosas e desgastantes dos trabalhadores rurais, que podem impactar a saúde física e psíquica desses trabalhadores (Araújo et al., 2018 ; Costa et al., 2022).
Não há agentes comunitários de saúde presentes no assentamento e o atendimento odontológico e de especialidades médicas se dá na área urbana, ocasião em que o paciente deve arcar com o transporte. Foi mencionada a construção de um posto de saúde no assentamento, que está parada devido às negociações entre município e governo federal, bem como enseja disputas entre os assentados, mormente quanto à localização onde a unidade será construída. Tal fato remete à discussão trazida por Neto (2012 ) sobre a instrumentalização das políticas públicas como meio de fragmentar a coletividade e dificultar a coalizão no assentamento.
Quanto à educação, crianças e adolescentes se deslocam do assentamento até uma vila com transporte escolar oferecido pela prefeitura, tendo sido manifestadas preocupações quanto a isso. O ônibus conta apenas com motorista, sem monitor para os alunos, sendo relatadas brigas entre estudantes maiores e os menores, além de ser um trajeto longo, o que faz com que passem horas no veículo, com prejuízos nos horários de alimentação. Acrescenta-se a isso a poeira e suor que são motivos de bullying. Esse assentamento é um dos únicos na região que não conta com escolarização no próprio território, e a implementação de educação do campo 3 e de creche são desejos e motivos de luta.
Com relação a outros níveis de ensino, os próprios assentados organizam, em uma sala improvisada, a educação de adultos (alfabetização e níveis iniciais). Quanto ao Ensino Superior, quem quer cursar tem que se mudar para a cidade ou pegar ônibus e voltar de madrugada. Alguns cursos profissionalizantes também eram ofertados pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), mas foram descontinuados devido à pandemia.
Os serviços de assistência social disponibilizados pela política nacional, apresentam suma importância em contextos de vulnerabilidade e desigualdade, como os assentamentos. Contudo, apesar dos moradores já terem acessado ou usufruído de alguma política assistencial, eles evidenciam um certo desconhecimento ou distanciamento com o serviço.
Esse é o contato que a gente tem, quando precisa tem a participação mas da gente ir lá para daí eles virem aqui. Eu sempre acho que tem como melhorar, eu não sei bem como funciona, mas eu acho que poderia ter um trabalho de mais acompanhamento.
Com exceção de um mutirão para o cadastro de todos os assentados, no qual os servidores foram até o assentamento, geralmente são os moradores que devem procurar o CRAS e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) para obterem a assistência necessária. Foi pontuada a necessidade de acompanhamento psicológico e assistencial, principalmente para os idosos, nas questões das mulheres e de violência doméstica. Araújo et al. (2018 ) e Sousa ( 2013) assinalam que as políticas de assistência, as previdenciárias e trabalhistas não são específicas para esse meio e os próprios assentados as desconhecem como tal.
Em relação à cultura, esporte e lazer, há uma ausência dessas políticas no assentamento, apesar deles levarem essa pauta ao poder público. Esses achados coadunam com os de Santos et al. (2020), que relatam limitações nas atividades de lazer e interação no meio rural e indicam a necessidade de políticas e investimento nessas áreas, posto que estas contribuem com a autoestima e a qualidade de vida dos assentados.
Outro ponto que eu esqueci de colocar, que não tem iniciativa em questão do esporte e cultura. Aí os jovens que gostam de esporte, essas coisas no assentamento, essas questões públicas, são negativas. Tem várias pautas junto da prefeitura para a construção de um campo de futebol para os jovens, uma academia popular para os idosos fazerem exercícios. Até hoje não fomos atendidos nessas questões.
As atividades existentes nessa área são realizadas pelos próprios assentados e dizem respeito a eventos religiosos ou comemorativos (bailes, festas juninas, aniversário do assentamento). Os entrevistados relataram que antes havia um campo de futebol, mas que não conseguiram manter por falta de recursos.
Observase que frente à ausência de serviços e políticas públicas básicas para uma existência digna, os assentados utilizam várias estratégias —de cunho individual ou coletivo— para sanar suas necessidades. As estratégias percebidas dizem respeito à demanda (e pressão) junto ao poder público, a obtenção do serviço por meio de recursos próprios junto a pessoas e entidades particulares (como a construção das casas e a compra de água), e a ajuda mútua e solidária entre as famílias ou a partir de organização coletiva, como a realização de mutirões para construção de poços de água.
Diante da escassez de políticas e serviços públicos no campo, muitas vezes seus moradores recorrem às cidades para terem acesso a seus direitos. Contudo, o isolamento e a dificuldade com transporte impossibilitam ou dificultam o acesso a esses serviços (Dantas et al., 2018 ). Esse obstáculo quanto à locomoção também fragiliza a mobilização política dos assentados, visto que são eles quem geralmente procuram as instituições políticas responsáveis para reivindicar seus direitos.
Além disso, foi destacado a má vontade dos representantes políticos em atender os assentados, o que parece refletir nos serviços prestados, que ora não são disponibilizados, ora são insuficientes, como evidenciado nas falas dos entrevistados: “O serviço que nós tem aqui eu acho que é pela metade”.
Eles não gostam muito de atender nós não, mas nós conseguimos marcar uma audiência [...] tem a reunião, senta aqui, discute a pauta e vai discutir com o prefeito ou com o Incra. [...] Outras vezes nós não somos nem atendidos nas pautas.
Ademais, os achados quanto às políticas públicas no assentamento se relacionam com os demais estudos citados, revelando a falta de compatibilidade destas com as particularidades do modo de vida dos assentados. Tais particularidades incluem a distância, a dificuldade de acesso, a cultura diferenciada, os modos de vida, entre outros. Um exemplo citado pelos assentados diz respeito à questão de gênero, tendo sido destacada a necessidade de atuação mais presente de políticas públicas voltadas para as mulheres, especialmente relacionadas à violência doméstica, o que no assentamento apresenta contornos particulares pois o isolamento territorial dificulta a denúncia.
Acho que falta trabalhar dentro do assentamento essa questão das mulheres, de vez em quando acontece alguma coisa, violência doméstica que precisava fazer um trabalho referente a isso, e se precisa também as mulheres têm que ir no CREAS (na cidade) e muitas não têm condições de sair, muitas não têm carro, não sabem, depende do marido, então se acontece alguma coisa marido não vai levar.
É preciso frisar que as próprias políticas públicas, em sua formulação, possuem mecanismos que permitem a consideração desses aspectos. Por exemplo, a política nacional de saúde prevê a existência do agente comunitário de saúde, funcionário que deve residir na comunidade, bem como prevê a incorporação dos saberes populares e a utilização da medicina tradicional, fato que não se observa no cotidiano dos serviços de saúde. Outro exemplo é a política nacional de assistência social, que prevê a existência da equipe volante para atender a zona rural, sendo que de acordo com o relato dos entrevistados, estes não se fazem presentes na comunidade.
Tanto no plano concreto, quanto no simbólico, a ausência e/ou insuficiência das políticas públicas contribuem para reforçar a visão das áreas rurais de agricultura familiar como atrasadas e como espaço exclusivo de produção, e de uma produção em condições precárias.
A insuficiência/ausência de serviços e políticas que deveriam ser garantidas à essa população, em realidade expressa um projeto político, pois justamente por se tratar de uma nova organização territorial, implementada pelo próprio Estado, as políticas públicas deveriam estar mais presentes nos assentamentos (Silva & Cereda, 2014; Sousa, 2013).
Essa ausência evidencia a opção do poder público, ao implementar as políticas, de invisibilizar e negligenciar aqueles que habitam nas áreas rurais, explicitando um dos efeitos perversos da opção por um modelo de desenvolvimento que privilegia os centros urbanos, a industrialização e o agronegócio no campo.
Nesse sentido, é possível afirmar que o setor público —que deveria atender as demandas dos assentados— tem produzido, reforçado e instrumentalizado as dificuldades, conflitos e desigualdades presentes na área rural, agindo assim em detrimento das necessidades e interesses da população rural e como agente de manutenção do funcionamento da sociedade capitalista. A ausência de políticas públicas apresenta uma intencionalidade, concorrendo para a consecução de interesses diversos dos assentados, e não se pode desconsiderar os impactos subjetivos e os sofrimentos psíquicos de várias ordens acarretados por tal situação.
A Psicologia no meio rural
Silva e Macedo (2017) sinalizam uma maior aproximação da Psicologia com a população da área rural através das políticas públicas, especialmente as de saúde e assistência social. No caso da presente pesquisa, de forma espontânea, a Psicologia sequer foi mencionada, sendo citada apenas nas questões específicas sobre a área, o que pode indicar um desconhecimento sobre a atuação da profissão, devido ao afastamento da mesma para com essa população: “Então aqui nós não tem nenhum acesso não né, pelo menos eu saiba aqui quem precisa de um psicólogo tem que ir lá e pagar particular, então nós não tem esse acesso não”.
Foi verificado que, no geral, os moradores não têm conhecimento sobre a atuação da Psicologia na área rural, constatando que se ela ocorre, ainda é de forma incipiente, sendo esta caracterizada pelos entrevistados como variável e insuficiente. Nesse sentido, uma questão levantada por um assentado merece especial atenção: “Esse serviço é tão essencial para a população assim?”.
Citaram a existência de psicóloga na escola —para as crianças com dificuldades de apren-dizagem— e no CRAS, mas que esta última não realizaria nenhum acompanhamento com os moradores. Relatam que 3 ou 4 pessoas fa-zem acompanhamento psicológico, mas que são todos através de serviços particulares.
Quando questionados sobre os serviços que a Psicologia poderia oferecer, mencionam o acompanhamento para assentados que têm problemas psicológicos e psiquiátricos graves e que não têm condições de pagar, bem como o acompanhamento de pessoas com estresse, a idosos, crianças e mulheres, em especial às vítimas de violência e de abusos (incluindo sexuais).
Eu acho que deveria ter [psicóloga], fazer umas visitas para nós no assentamento, para ajudar porque nem todos podem estar pagando para acompanhar, tem várias pessoas com problemas no assentamento.
As práticas que os moradores relataram dizem respeito a uma lógica clínica-individual, esporádica, ficando restrito ao atendimento psicológico a quem apresenta uma demanda descrita por eles como “problemas” e “necessidade específica/ especificidade”.
Também chama atenção em como, mesmo tendo ciência da presença do profissional em alguns serviços públicos, ressaltam que os que procuram o serviço psicológico o fazem na área privada. Dessa forma, é possível constatar no assentamento estudado uma presença da Psicologia semelhante à encontrada por Dantas et al. (2018), qual seja, que se caracteriza pela prevalência de uma lógica individualizante e etnocêntrica, o que afeta a organização de trabalho, a vida diária dos usuários e a própria política pública/serviço prestado, uma vez que nessa perspectiva não se alcança uma intervenção capaz de alterar cenários de vulnerabilidades.
Entre os vários fatores que explicam esse desconhecimento, está o pouco contato da Psicologia com a área rural, com a riqueza cultural e com a variedade dos modos de vida de suas populações, o que produz processos de subjetivação diversos. Além disso, nota-se que o atendimento clínico, prática hegemônica na Psicologia, tem predominado ainda nas práticas profissionais e no senso comum. Por outro lado, a atuação da Psicologia Social, mesmo que se apresente em pesquisas e no contexto acadêmico, ainda não têm chegado de fato a toda a população nas comunidades e em especial no campo.
A Psicologia se desenvolveu no país a partir de uma visão de mundo elitista e a serviço de um projeto de modernização da sociedade, tendo como base um modelo universalizante de homem e de seu funcionamento psíquico, a partir de um referencial eurocêntrico, o qual desconsidera os modos de viver do ser humano (condições materiais e concretas, historicidade, relações sociais, cultura, espiritualidade, entre outros) como elementos indissociáveis de seus processos de subjetivação (Bock et al., 2022 ).
Apesar da Psicologia ter se aproximado do campo recentemente, principalmente por meio das políticas públicas e em municípios de pequeno e médio porte, com características eminentemente rurais, ainda apresenta uma prática predominantemente urbana, sem considerar as particularidades desse território e sua população. Isso porque a Psicologia historicamente se desenvolveu nos centros urbanos e com atuação voltada para suas demandas, ainda que o aumento populacional —e consequentes questões sociais que emergiram— se deu em grande parte devido ao êxodo rural (Lopes et al., 2018 ; Silva & Macedo, 2017).
São vários os desafios para a efetivação de uma prática mais contextualizada, a começar pela formação, pois nos espaços acadêmicos não há muitas disciplinas que abordem a temática rural, sendo também esporádicas e/ou marginais as que discutem as políticas públicas, bem como atividades práticas, como estágios e projetos de extensão que estimulem o contato com o campo e o desenvolvimento de habilidades para trabalhar com essa população (Lopes et al., 2018 ; Silva & Macedo, 2017). Ademais, ainda é pontuado a carência de estudos que enfoquem a diversidade e complexidade da população rural e a atuação da Psicologia nesses espaços (Silva & Macedo, 2017), o que poderia colaborar para serem pensadas serviços, políticas e intervenções que de fato atendam às suas demandas.
A Psicologia deve considerar as particularidades dos modos e condições de vida no campo, entendendo os atravessamentos e múltiplas determinações que se manifestam nesse cenário (Dantas et al., 2018 ; Lopes et al., 2018). Dantas et al. (2018) apontam especialmente para as singularidades dos assentamentos, em que os profissionais devem se atentar para os micro e macrodeterminantes desse contexto, bem como os efeitos políticos e subjetivos do envolvimento na luta pela terra. De forma semelhante, Silva e Macedo (2017) enfatizam a necessidade de se problematizar os processos, tensões e conflitos de interesses presentes no território, como os dos representantes políticos, instituições, e dos proprietários de terra e empresários do agronegócio. Estando atento a essas questões, Lopes et al. (2018) acentuam que se terá um melhor direcionamento das ações a serem empregadas, inclusive nas políticas públicas, respeitando todas as particularidades do território e com o propósito de atenuar os entraves e conflitos detectados.
Por fim, cabe assinalar que embora atualmente a Psicologia não possua uma presença significativa no campo, especialmente nos assentamentos, ou que essa atuação seja descontextualizada e que promova uma compreensão individualista e individualizante de sujeito, são várias as possibilidades de atuação que essa área tem a oferecer para essas populações, principalmente por meio das políticas públicas.
A práxis do psicólogo interfere na produção da própria política pública e dos serviços que a materializam, seja ao contribuir com a efetivação de serviços que concorrem para a invisibilização, vulnerabilização e submissão das populações-alvo das políticas, seja para contribuir com a efetivação de serviços que fomentem a emancipação e construção de sujeitos ativos, autônomos e críticos e frente aos direitos que são a eles direcionados.
Considerações finais
Os dados trazidos por essa pesquisa indicam que, no caso do assentamento estudado, não é o desconhecimento por parte dos assentados que dificulta o acesso aos serviços e políticas públicas, mas aspectos como a sua ausência no território, sua configuração burocrática, a desconsideração das particularidades e necessidades específicas da população em tela, além de descaso e da reprodução do preconceito para com os assentados da reforma agrária.
Nesse sentido, é preciso considerar o caráter ambivalente das políticas públicas que, apesar de serem fruto de muita luta da classe trabalhadora, concorrem para a manutenção do modelo agroprodutivo vigente, produzindo com a sua presença ou sua ausência, a precarização das condições de vida, a fragmentação dos co-letivos e das relações sociais presentes no assentamento e, em último caso, a expulsão dos agricultores familiares do campo e a reconcentração de terras (Lopes et. al., 2018).
Com relação à atuação da Psicologia, ainda que a literatura assinale uma maior aproximação da profissão com as ruralidades, percebe-se um desconhecimento dos assentados sobre a mesma, bem como a reprodução de um modelo clínico-individualizante, o que nos chama a atenção para a necessidade de um efetivo compromisso ético-político para com as populações do campo, bem como uma formação que de fato rompa com o modelo urbanocêntrico, e contemple a diversidade cultural e social do povo brasileiro.
Por fim, sugere-se o desenvolvimento de pesquisas sobre a atuação da Psicologia em políticas públicas voltadas para o atendimento de outras populações do campo, como as comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas, entre outros que fazem da área rural seu espaço de vida e de afeto.
Resumo:
Introdução
O campo, as políticas públicas e a Psicologia
Método
Resultados e discussão
Impactos nos modos de vida
As políticas públicas no assentamento
A Psicologia no meio rural
Considerações finais